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1 de Fevereiro de 2021

Game Changer 11 – Entrevista com Alexandre Quintanilha

Nascido no decorrer do ano de 1945 em Lourenço Marques, em Moçambique, Alexandre Quintanilha completou o seu Doutoramento em Física em 1972, na Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo. Posteriormente, mudou-se para a Universidade da Califórnia em Berkeley, onde trabalhou durante perto de duas décadas e desenvolveu investigações sobre stress celular.

Ainda em Berkeley, construiu e fundou um centro interdisciplinar de estudo sobre os Efeitos Atmosféricos e Biosféricos das Tecnologias num dos mais prestigiados laboratórios dos EUA. No início dos anos 90, torna-se professor da Universidade do Porto onde funda o Instituto de Biologia Molecular e Celular.

Professor catedrático jubilado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, publicou diversos artigos em revistas científicas de nível mundial sendo ainda coordenador e autor de vários trabalhos nas áreas da Biologia, do Ambiente e da Física Aplicada.

Em entrevista à Game Changer, dá a conhecer um pouco mais de si, mencionando os maiores desafios que enfrentou, ao mesmo tempo que faz um balanço da sua preenchida e bem-sucedida carreira.

Quando/Como surgiram os planos de começar a trabalhar na área da ciência?

AQ- Talvez em vários momentos, que se foram mutuamente reforçando. Tínhamos um microscópio muito antigo em nossa casa e lembro-me perfeitamente da primeira vez que o meu pai me mostrou organismos microscópicos que tinha recolhido de um pequeno lago de jardim. Fiquei com uma enorme curiosidade por esse mundo invisível a olho nu. Nas noites sem luar, íamos muitas vezes para a praia, maravilhados pelo espetáculo da Via Láctea, das diferentes constelações, dos planetas e do mistério da imensidão do universo.

Mais tarde lembro-me de ficar fascinado com vários aspetos da matemática que o meu pai partilhava comigo, tirados dum livro espantoso que ele relia frequentemente: “Mathematics for the Million” de Lancelot Hogben.

Recordo a atração pela elegância da trigonometria, mas também da cristalografia e da paixão pela disciplina de geometria descritiva nos anos finais do liceu. Até aos 14 anos era um aluno de 10, 12. Uma viagem à ilha da Inhaca, com o professor de ciências naturais, onde visitamos os espantosos ecossistemas dos mangais e da barreira de corais, mudou tudo. Nos exames finais do liceu, lembro-me de ter tirado média de 17 e um 20 a geometria descritiva. Era tão inesperado, e até invulgar nessa época, que o meu pai foi ver as pautas para ter a certeza. Ao entrar na universidade comecei pela engenharia, mas no segundo ano foi a física, com as grandes descobertas do início do século XX, que me fascinaram. Acabei por me doutorar em física teórica na área da supercondutividade.

Mas foram quase sempre os professores e algumas personagens da história que influenciaram as minhas escolhas.

Que balanço faz da sua carreira profissional?

AQ- Considero que tive muita sorte. Não só pelas pessoas que conheci e que sempre me encorajaram a construir as instituições que tive o privilégio de imaginar e concretizar, mas também pelos locais que tornaram esses sonhos possíveis. E claramente pelos muitos colaboradores que dedicaram tanta da sua energia a avançar um pouco mais as fronteiras do conhecimento em tantos e variados domínios.

Como classifica a evolução da ciência nos últimos anos? O que está para vir? Quais os próximos passos?

AQ- Preferia falar um pouco da evolução do conhecimento. A ciência, ou o método científico, consiste em duvidar da autoridade e ir à procura da evidência experimental das ideias (novas ou antigas). São dois os temas que julgo pertinentes e que estão relacionados entre si. Um é o do “melhoramento humano” o outro é o da forma como “encaramos o risco”.
O impacto das novas tecnologias tanto fascina como assusta. O nuclear e a engenharia genética são dois exemplos conhecidos e que continuam a polarizar muitos debates. Hoje temos novos temas, como a biónica, a inteligência artificial, a seleção de embriões, a biologia sintética e a privacidade dos nossos dados (assim como o direito ao esquecimento dos mesmos); mas também as alterações climáticas, a demografia global, o conceito de género, o futuro do trabalho e a distribuição da riqueza.

No contexto do “melhoramento humano” que fazem parte do nosso dia-a-dia deveríamos incluir a anestesia, a reanimação, os antibióticos, as vacinas, as transfusões, os transplantes, a procriação medicamente assistida, a “pílula”, os antidepressivos (assim como tantos outros fármacos usados nas mais variadas terapias) e os extraordinários avanços no domínio dos novos materiais e das tecnologias de imagem “não invasiva”. Curiosamente, ou talvez não, muitos destes avanços foram e continuam controversos. A questão das vacinas é hoje particularmente relevante quando confrontamos a liberdade individual versus a responsabilidade social.

No futuro, creio que todos os pais vão querer dar aos seus filhos o mesmo que sempre quiseram dar: as melhores ferramentas disponíveis para atingirem os seus objetivos de vida. Até agora isso consistia em proporcionar as melhores condições possíveis para o desenvolvimento intelectual e emocional dos seus filhos. A melhor nutrição, o melhor ambiente familiar, a melhor educação, etc. A aposta estava na “nurture”. Nem sempre o conseguiam, como é evidente nas imensas desigualdades que continuam a existir por esse mundo fora.
Hoje, o conhecimento detalhado do genoma humano e de formas cada vez mais precisas de o “editar”, permite pensar em redesenhar esse mesmo genoma de acordo com objetivos específicos. Ainda estamos longe de saber quais seriam os objetivos desejados, mas isso não impede muitos de pensarem que no futuro isso venha a ser possível e desejado. Aqui a ênfase estaria na “nature”. O debate Nature vs Nurture é antigo e tem passado por diferentes fases, mas são poucos hoje os que acreditam nesta dicotomia. Os genes e o ambiente estão em permanente diálogo, o que torna o seu controle muito difícil.

No entanto, a forma como olhamos para as aplicações das novas tecnologias, como as desejamos ou as tememos, tem muito a ver com a forma como encaramos o risco. Entre os vários fatores que condicionam a nossa perceção do risco, eu mencionava três:

a) o que sabemos versus o que não sabemos;

b) a nossa “visão” do mundo, que pode ser mais ou menos robusta ou frágil;

c) a confiança que nutrimos pelas fontes de informação ao nosso dispor.

E é em relação ao que “não sabemos”, ou talvez ainda mais em relação às “fake news” sobre uma determinada aplicação, que dependemos da nossa “visão” do mundo e da confiança que temos nas fontes de informação. Adiantaria que somos todos um pouco esquizofrénicos. Temos posições quase contraditórias em relação a muito do que ainda é desconhecido. Mais uma razão para duvidar dos referendos e para apostar nas formas mais claras e menos complexas de comunicar esse conhecimento.

Se tivesse de precisar um momento/situação, o que considera ter sido um “Game Changer” dentro da área da ciência, o que escolhia?

AQ- O Charles Darwin com a sua teoria da evolução das espécies. O impacto que teve e que ainda tem na forma como olhamos para nós próprios foi enorme. Ainda hoje levanta polémica, apesar da evidência impressionante que tem sido acumulada desde a publicação da ideia. Afinal somos animais e surgimos em paralelo com outras espécies. A história de Adão e Eva só pode ser vista, na melhor das hipóteses, como um mito. Mito esse, sedutor e com enorme impacto no pensamento, mas que não tem qualquer base biológica.

Nasceu em Moçambique e caracteriza-se como “Africano de alma”. O que é que África lhe transmite?

AQ- Penso que as sensações que acumulamos na meninice e juventude nunca nos abandonam. Hoje até pode parecer um cliché, mas o nascer e pôr do sol, os cheiros da savana, das queimadas, mas também dos velhos livros da pequena biblioteca em nossa casa, a água quente do mar, o “cacimbo”, as trovoadas imensas com chuva torrencial das monções e a constelação do Cruzeiro do Sul, o ruído dos animais selvagens, nunca mais se esquecem. Vivi 16 anos em Lourenço Marques (atual Maputo) e 9 anos em Johannesburg – climas e ambientes muito diversos. Passei muitas férias nos arredores da Cidade do Cabo, na “Garden Route”, no Drakensberg, no Xai-Xai, nos pântanos do Okavango, nos desertos do Karoo e da Namíbia e nas montanhas da Swazilândia.
Experimentei muito cedo comida portuguesa, inglesa, alemã, chinesa, indiana e africana. E (o mais importante) a gigantesca maioria das memórias que guardo dos meus pais, têm a ver precisamente com estes locais. Assim como as minhas primeiras paixões que foram vividas muito intensamente nestes primeiros 25 anos da minha vida. Era praticamente impossível não ter uma “alma africana”.

Cientista reputado, escritor, professor, deputado… que planos tem ainda por realizar?

AQ- Neste momento a prioridade é conseguir que a Assembleia da República aprove uma Lei de Bases do Clima inteligente, realista e ambiciosa. Portugal, felizmente, está muito bem posicionado no panorama internacional para que tal aconteça. Mas, valorizar o conhecimento e combater os fundamentalismos e a intolerância continuarão a ser os meus “planos por realizar”.

Ao olhar para trás, para tudo que fez e viveu, como se sente?

AQ- Não costumo olhar muito para trás. Estou a acabar de ler “José e os seus Irmãos”, obra grande de Thomas Mann. Percebi muito cedo que tinha de a ler devagar, para apreciar a riqueza dos personagens e a atualidade dos dilemas. Mas tem-me ajudado a confirmar uma ideia antiga: os seres humanos são complexos e os seus comportamentos difíceis de prever. Mas, são esses os atributos que os tornam fascinantes: serem simultaneamente inspiradores e assustadores.
Sinto que, se calhar, recebi mais do que dei. Pelo que recebi, estou imensamente grato. Espero que o que dei tenha ajudado alguns a crescer.

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